Toda vez que olho para as minhas mãos eu reparo em pequenas cicatrizes que se espalham pelos meus dedos.
Na mão direita, no dedão, tem uma em formato de bolinha de quando eu era criança. Gostava de brincar com fogo e havia descoberto que era interessante quando ele entrava em contato com plástico.
Peguei um palito de cotonete e enquanto o segurava por uma ponta, ateei fogo na outra. Achava linda a forma como o palito de plástico azul ia se desintegrando em pingos de chuva fogosa. Quando estava prestes a chegar na outra ponta eu largava o palito na terra ao lado do pátio de casa. Mas numa dessa vezes eu me atrapalhei e, segurando o palito com a mão esquerda, deixei cair um pingo daquele plástico azul no dedão da mão direita. E doeu pra caramba.
Da outra vez deixei marcas na mão esquerda, mas nela foram cacos de vidro. Eu também ainda era criança e estava na casa da minha avó. Não lembro exatamente que idade eu tinha. Ela havia feito brigadeiro de colher e deixado em um prato na geladeira. Sendo a formiga que sou eu já tinha comido minha porção mas ainda queria mais. Então tentei sorrateiramente, sem que ela percebesse, pegar um pouco mais do doce escondido. Mas de nada adiantou…
O brigadeiro já tinha esfriado e agora, naquele momento, estava duro e difícil de tirar com a colher. Eu estava na cozinha dela, cuidadosamente agachado com a porta da geladeira aberta segurando o prato de brigadeiro na mão esquerda, equilibrado na minha palma, enquanto tentava arrancar um pedaço com a colher na mão direita.
Aconteceu que o prato se desequilibrou. Ou melhor, eu o desequilibrei e antes mesmo de ele chegar ao chão ele bateu na geladeira e se partiu. Na tentativa de impedir que isso acontecesse foi quando os cacos cortaram a pele dos meus dedos polegar, indicador e médio. Pequenas cicatrizes que me lembram de nunca mais tentar comer doce sem permissão, e também um lembrete de não pegar nada de ninguém.
A outra cicatriz, a mais atual, tem apenas alguns meses. Sobre essa eu não tenho nenhuma explicação. Não sei como aconteceu, o que a causou, por que causou…
Era um dos finais de semana em que tinha ido dormir com o garoto de quem eu gostava. Fazíamos isso praticamente toda semana. Eu gostava da companhia dele, o admirava de certa forma. Me parecia uma pessoa muito segura de si e bastante objetiva a respeito da vida. Eu também gostava de conversar com ele, e sinto que a partir de tantas conversas sobre diversos assuntos que acabei me afeiçoando tão rapidamente a ele.
Se eu não tivesse perdido o meu celular no começo do ano talvez eu pudesse lembrar exatamente do dia em que aconteceu. Eu me orientava pelos acontecimentos da minha vida, por menor que fossem, através das fotos que eu capturava em momentos específicos. Talvez houvesse naquela galeria alguma foto de alguma coisa que fosse me desbloquear a memória daquele fim de semana. Mas eu nunca tinha feito backup durante aquele período então este mínimo acontecimento está fadado a cair no esquecimento.
Nós dormimos juntos, sempre muito próximos um do outro, como nunca antes havia acontecido com pessoas com quem já compartilhei uma cama. E na manhã seguinte, ao acordar, a ardência foi uma das primeiras coisas que senti na mão esquerda.
É engraçado que com ele eu conseguia ter um sono pesado, não perturbado, e no dia seguinte acordava descansado independentemente de ele ter dormido sobre o meu braço estendido, com a cabeça no meu peito, ou até mesmo atravessado sobre o meu tronco. Então não consigo imaginar o que aconteceu.
Tem uma cicatriz em linha reta, como se fosse um risco, no meu dedo anelar esquerdo. Procurei se não havia nenhum bicho morto pela cama, algum tipo de lagarta ou qualquer outra coisa que pudesse ter me machucado enquanto eu dormia. Até mesmo alguma ponta de alguma coisa, uma farpa da cama, uma agulha perdida no colchão… nada. Nada explicava. Também descartei a possibilidade do bicho ou inseto ter me queimado porque qual era o sentido de isso ter acontecido apenas no meu dedo anelar e não haver nenhuma outra marca em nenhuma parte do meu corpo… ou até mesmo do dele. O fato é que jamais descobri o que aconteceu e a cicatriz é um mistério que talvez nunca tenha solução.
Durante os dias seguintes ela coçava e ardia e acabou formando uma casquinha, que eventualmente secou o suficiente para ser arrancada. E então a marca ficou, curiosamente estampada nesse dedo. E ela acaba me lembrando dessa história que eu não conto porque foi só uma expectativa, de tudo que eu esperava que fosse com aquela pessoa e acabou não sendo. Provavelmente existe aqui algum significado ou metáfora para justificar a passagem de certas pessoas pela nossa vida. Talvez seja isso.
Também tenho uma outra cicatriz que fica no meu antebraço direito. Foi algo acidental, que eu vi acontecer, mas não quero escrever sobre essa. Talvez em outra vida.